Noturno
Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa?E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?Que vale o pensamento humano,esforçado e vencido,na turbulência das horas?Que valem a conversa apenas murmurada, a erma ternura, os delicados adeuses?Que valem as pálpebras da tímida esperança,orvalhadas de trêmulo sal?O sangue e a lágrima são pequenos cristais sutis,no profundo diagrama.E o homem tão inutilmente pensante e pensadosó tem a tristeza para distingui-lo.Porque havia nas úmidas paragensanimais adormecidos, com o mesmo mistério humano:grandes como pórticos, suaves como veludo,mas sem lembranças históricas, sem compromissos de viver.Grandes animais sem passado, sem antecedentes,puros e límpidos,apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancose noções de água e de primavera nas tranqüilas narinase na seda longa das crinas desfraldadas.Mas a noite desmanchava-se no oriente,cheia de flores amarelas e vermelhas.E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes,erguiam no ar a vigorosa cabeça,e começavam a puxar as imensas rodas do dia.Ah! o despertar dos animais no vasto campo!Este sair do sono, este continuar da vida!O caminho que vai das pastagens etéreas da noiteao claro dia da humana vassalagem!
Cecília Meireles